Você sabia que é proibido utilizar carroças para transportar materiais de construção?
Lei sancionada há dois anos pelo prefeito Roberto
Cláudio proíbe a utilização de veículos de tração animal para carregar
materiais de construção, porém, maus-tratos a jumentos, burros e cavalos
continuam.
É meio-dia. O sol está a pino, o mormaço sobe do
asfalto pedregoso de uma avenida movimentada de Fortaleza - mas ela segue
caminhando descalça, carregando quase 800 quilos de telhas nas costas, sem água
nem comida há sabe-se lá quantas horas. A imagem parece cruel assim, mas quando
vista nas ruas da Capital é naturalizada - já que mesmo sendo proibida por lei
desde 2016, a utilização de cavalos, jumentos e burros para carregar materiais
de construção continua em prática, tendo vários flagrantes registrados pela
reportagem do Sistema Verdes Mares em dois dias.
A rotina extenuante de transportar cargas de até
300 telhas pelas ruas do bairro Dias Macedo, das 7h às 17h, sacrifica a burra
"Furiosa" todos os dias. O animal se soma à frota de dois carros 4x4
que realizam entrega de materiais para um depósito da Capital.
O entregador Alberto José, 65, monta no animal há
quatro anos, e revela que o proprietário do estabelecimento sabe da proibição.
"Ele deixa comigo porque eu dou ração, zelo, cuido como se fosse minha,
mas já disse que quando eu me aposentar ele vende ela", afirma,
reconhecendo os maus-tratos que estão além de qualquer lei. "Se até a
gente cansa, avalie um bicho, né?" A reportagem pediu o endereço do
comércio ao funcionário, mas ele se recusou a fornecer.
A falta de opção de transporte e trabalho para o
dono é o que pesa sobre o corpo de "Cachorrinho", cavalo do pedreiro
Fábio de Lemos, 35 - que mesmo transportando entulho e móveis como bico para
driblar o desemprego, garante cuidar do bicho até melhor do que a si mesmo.
"Isso já vem de muito tempo. No trânsito é que é perigoso, né? E o animal
não nasceu pra trabalhar não. Nasceu pra viver solto", diz, enquanto
amarra as cordas que prendem "Cachorrinho" à carroça e ajusta a focinheira
de ferro para cobrir as feridas na face do equino.
Maus-tratos
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV)
descreve como situações de maus-tratos as "caracterizadas por agressão
física ou psicológica, abuso, negligência ou qualquer ameaça ao bem-estar de um
indivíduo". Essas ameaças podem ser nutricionais, como submissão do animal
a "fome e sede prolongadas e subnutrição"; ambientais, quando não se
fornece "abrigo e superfícies adequadas para caminhar e descansar, em
situação climática de conforto térmico e ambiente higienizado"; de saúde,
se "o animal tem dor, doenças e ferimentos"; ou, ainda,
comportamentais, quando se nega ao animal o direito de "estar livre para
exercer seu comportamento natural".
A ausência de cuidados e a constante exposição dos
animais a uma exploração além dos limites físicos são uma combinação fatal,
como alerta o vice-presidente da ONG Deixa Viver, Marcel Girão, que trabalha
pela proteção dos animais. "Recentemente, mais de um animal morreu por
abusos. Eles morrem de desidratação, fome e calor. No horário mais quente do
dia, estão sendo explorados com altas cargas na carroça. Eles fazem muita força
e desabam."
Em Fortaleza, uma das áreas onde a prática é mais
comum, conforme atesta o ativista, é a Regional I, que concentra bairros periféricos.
"Além de materiais de construção, os cavalos puxam garrafão de água,
famílias inteiras em subidas, em pleno sol de meio-dia. Um animal que se
desenvolveu para andar em terra precisa pisar num asfalto quente, muitos deles
levando chicotadas e sendo perfurados para andar com mais velocidade".
Lei falha
Para Marcel, a cobrança de uma fiscalização mais
presente e efetiva é fundamental para mitigar o problema. "A mudança dessa
cultura vai acontecer quando o Poder Público fiscalizar junto com as ONGs. Nós
interceptamos trabalhadores que passam utilizando carroças e tentamos
conscientizá-los, mas quando damos as costas, continuam explorando os
animais", lamenta.
A presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos
Animais da OAB/CE, Lucíola Cabral, classifica como "absurda" a
tipificação prevista em lei. "A lei que existe hoje se restringe a proibir
transporte de material de construção, o que é um absurdo. Porque carga é
carga", critica a advogada, afirmando que uma "regulamentação mais
detalhada" está inclusa no Código da Cidade, que tramita, atualmente, na
Câmara de Fortaleza.
Identificar
A deficiência de fiscais e a não inclusão dessa
pauta entre as prioridades rotineiras deles são, de acordo com Lucíola, duas
outras deficiências da legislação. "Isso é tão importante quanto alguém
derrubar uma árvore, construir irregularmente, aterrar um riacho. A Agefis
(Agência de Fiscalização de Fortaleza) tem, hoje, oito veterinários que são
fiscais. Ninguém melhor do que eles para identificar os maus-tratos e os
problemas sofridos pelos animais".
Outra falha, conforme avalia a presidente da
Comissão, é a penalidade prevista. Atualmente, quem descumprir a legislação
está sujeito a multa no valor de R$1 mil, apreensão do veículo e cassação de
alvará de funcionamento do estabelecimento comercial. "Mas não basta
retirar a carroça, é necessário criar um local apropriado para recolher os
animais e encaminhá-los para adoção ou o que for. E, em se tratando de animais
de grande porte, isso é bem mais complicado", critica a advogada.
Fiscalização
Em nota, a Agefis informou que "realiza
rotineiramente visitas a estabelecimentos comerciais e obras para fiscalização
documental, verificação da adequação aos licenciamentos e para coibir práticas
irregulares". Entre 2017 e 2018, segundo o órgão, foram realizadas 4.528
fiscalizações, mas "não foram registrados flagrantes da utilização de
veículos de tração animal nos locais estipulados pela legislação". De
acordo com a Agência de Fiscalização, é necessário flagrante para que a
autuação seja concretizada.
Segundo a advogada Lucíola Cabral, a Ordem dos
Advogados do Brasil Secção Ceará está pleiteando uma audiência com a Prefeitura
de Fortaleza para cobrar "uma fiscalização mais eficiente e uma estrutura
apropriada" para a Coordenadoria Especial de Proteção e Bem-Estar Animal
(Coepa) funcionar.
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